Pensar e viver a Fé – Um convite aos homens e mulheres do nosso tempo Pe. Márcio Luciano Martins de Souza

Pensar e viver a Fé – Um convite aos homens e mulheres do nosso tempo  Pe. Márcio Luciano Martins de Souza

            Viver e refletir a fé, em tempos turbulentos como os que estamos vivendo hoje, é, sem dúvida, algo que nos traz certa perplexidade, sem deixar de ser um desafio fascinante. Hoje, o cristão deve viver sua fé num contexto mais desafiador que no passado. Todos experimentamos que o que aprendemos quando ainda éramos adolescentes sofreu mudanças em nossos dias; alguns conteúdos mal são mencionados enquanto outros ganham nova ênfase. Além disso, temos de ser cristãos numa sociedade secularizada, relativista, sujeita à rápidas e sucessivas transformações socioculturais; agitada e estressada[1]. É uma sociedade complicada e aparentemente contraditória.

            Transcorridos tantos séculos de presença do cristianismo na história da humanidade, são numerosos os teólogos que aprofundaram e explicitaram o significado e o conteúdo da fé cristã. Nas últimas décadas, poderíamos destacar vários. A modo de exemplo pode-se citar: Karl Rahner, com a famosa obra Curso fundamental da fé; Romano Guardini com a obra A vida da Fé; Félix Alejandro Pastor, com A Lógica do Inefável; Mário de França Miranda com Existência Cristã Hoje; e Joseph Ratzinger, com Introdução ao cristianismo. Foram elaborados diversos verbetes, artigos, que sintetizam bem a importância em explicitar o significado da experiência de fé no próprio processo de elaboração teológica, com uma produção vasta, complexa e profunda.

            Nos dias atuais, diante da realidade pastoral das Dioceses e Paróquias, verifica-se com certa facilidade, que se pode instrumentalizar o desejo de intimidade com Deus presente no ser humano de nosso tempo, com propostas eminentemente voltadas para a satisfação de situações imediatas, sentimentalismo, e não vivência do conteúdo da fé, (fides quaeaquilo que a Igreja crê), um consumismo religioso que se apresenta através de sessões do descarrego, teologia da prosperidade, facilidades de curas para os males e as doenças, etc; colocando os “símbolos” essenciais da profissão de fé como um anexo que pouco ou nada interfere no caminho para Deus. Por isso, ainda que se corra o risco de repetições, faz-se necessário ter consciência do caminho humano no qual a fé é acolhida e vivida como «pressuposto óbvio da vida diária»[2]

            Na verdade, a fé é vista em uma ótica global da vida, da história e do universo, um fenômeno humano universal, comum da própria existência humana. Permitindo compreender a estrutura fundamental e significativa do ser humano. Nada escapa à sua percepção, pois tudo o que é humano, ou se relaciona com o humano, lhe diz respeito. Por isso, «a fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas»[3].

            Sendo assim, a fé define-se como um encontro pessoal com Deus, como sentido último da existência e da história humana. Se expressa numa vivência, numa prática (práxis), exigindo a conversão, que se traduz na mudança de critérios de vida, de comportamento e de julgamento; «esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza em nós»[4]. Ter fé, neste sentido, significa caminhar nesta vida orientado pelo encontro com Deus. Para nós cristãos, este encontro se dá na pessoa de Jesus Cristo, de suas palavras e de suas ações. Confessando-o como sentido último de nossas vidas, Ele se torna a perspectiva fundamental, a chave mestra, por meio da qual interpretamos e avaliamos a realidade à nossa volta, a sociedade, a história, e também, numa dimensão particular, nossas experiências vitais, sucessos e reveses, realizações e sofrimentos.

            Contrariamente à lógica do senso comum, no qual a fé pode ser apresentada como uma espécie de experiência irracional, rodeada de afirmações como: «a fé é um se atirar no abismo sem saber o que há no fundo; a fé é atravessar o rio sem saber o quanto é profundo»; queremos apontar para uma experiência na qual este pensamento não cabe, sobretudo diante da realidade do mundo moderno. A fé precisa ter um mínimo de plausibilidade. Precisa fazer sentido, precisa ser humanizadora, ser expressão da vida e da confiança em Deus. Obviamente que a busca de plausibilidade não elimina o mistério. Sempre haverá uma dose de mistério, pois, se assim não fosse, não seria fé. Neste sentido, é bom lembrar o beato João Paulo II, reportando-se a Santo Tomás: «Embora sublinhando o caráter sobrenatural da fé, o doutor Angélico não esqueceu o valor da racionalidade dela, antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentido de tal racionalidade. Efetivamente, a fé é de algum modo “exercitação do pensamento”, a razão do homem não é anulada nem humilhada, quando estes são alcançados por decisão livre e consciente»[5].

            A fé, como encontro pessoal, como comunicação do homem com Deus, como ato do ser humano, implica sempre racionalidade, plausibilidade, liberdade, decisão. «A fé não exime nem dispensa a razão, ela, para ser verdadeira deve procurar compreender, não para abolir o mistério, mas vislumbrar-lhe as reais dimensões, cantar maravilhada a graciosa lógica de Deus»[6]. Constitui-se fundamentalmente em relação a Deus, em «...empenhar-se num caminho que dura a vida inteira»[7]. O ser humano crê com a totalidade de seu ser: inteligência, coração, prática. Realiza-o enquanto é tempo e eternidade, imanência e transcendência. Por isso sua fé o lança para além desse tempo, para dentro da eternidade e da vida de Deus, que lhe possibilita «decidir de estar com o Senhor, para viver com Ele»[8].

            Não podemos portanto, prescindir de nossa humanidade para ter fé. De nossas capacidades e experiências que marcam fundamentalmente a nossa condição. O Vaticano II afirma que, pela fé, o ser humano, livremente, se entrega todo a Deus, prestando ao Deus revelado o obséquio pleno da inteligência e da vontade, acolhendo na obediência da fé à revelação feita por Ele[9]. Portanto, para o Concílio a fé cristã é uma resposta humana à revelação de um mistério divino. É a aceitação obediente de uma promessa de Deus feita ao mundo, primeiro através de Israel e depois através de Jesus Cristo e da Igreja.

A fé se constitui portanto, como uma resposta à revelação que envolve toda a vida do crente, proporcionando uma renovação interior e exterior, como expressão a um projeto que se depreende da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo: «o objetivo da fé cristã é proporcionar ao convertido uma experiência de vida que dê sentido e finalidade à existência como um todo, ocasionando uma transformação pessoal e coletiva»[10]. Enquanto a fé nos faz buscar a Deus, percebemos, no interior da própria busca, que precisamos da graça divina. Sozinhos, não seríamos capazes de chegar ao final do processo realizador de nossas vidas. Então, em seu amor gratuito, Ele vem nos libertar, curar, e salvar.

 

[1] Cf. Na Carta Apostólica Porta Fidei, o Papa Bento XVI, convida a Igreja a se preparar para o Ano da Fé, que será celebrado de 11 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013. Bento XVI, na citada carta, no número 12, fala resumidamente das tendências que questionam hoje a nossa Fé, e dos desafios a serem enfrentados.

[2] BENTO XVI, Carta Apostólica Porta Fidei, n. 12.

[3] Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 11.

[4] BENTO XVI, Carta Apostólica Porta Fidei, n. 15.

[5] JOÃO PAULO II, Fides et Ratio: Sobre a relação entre fé e razão, n. 3.

[6] PASTOR, F. A., A lógica do inefável, p. 152.

[7] BENTO XVI, Carta Apostólica Porta Fidei, n.1.

[8] BENTO XVI, Carta Apostólica Porta Fidei, n. 10.

[9] Cf. Constituição Dogmática Dei Verbum, n. 5.

[10] CARIAS PINTO, C., O homem integrado –  Antropologia Teológica, p. 86.